O outro projecto consistiu na criação de uma escola especial para crianças da etnia Batwa (das tribos pigmeus), uma vez que não são aceites nas escolas públicas e nem mesmo nalgumas privadas por terem um enorme atraso civilizacional comparativamente à população local (imagine-se!) e por ser uma comunidade com uma elevadíssima taxa de incidência de SIDA. Estas tribos de Pigmeus, que sempre foram caçadores-recolectores, foram obrigadas a deixar a floresta por motivos de Conservação da Floresta de Bwindi e salvação da espécie ameaçada dos Gorilas da Montanha, passando a residir nas aldeias na periferia da Floresta, onde nunca tiveram qualquer apoio para a re-alocação, nem nunca se souberam adaptar ao novo estilo de vida. Rubuguri é, de facto, uma problemática muito complexa.
4. Qual a tua relação com a comunidade local? E com que frequência te costumas deslocar a Rubuguri?
Pedro Quirino: As minhas estadias em Rubuguri acontecem quando lá pernoito nas viagens ao Uganda ou na altura em que faço os safaris naquela parte de África. É a minha base da operação, portanto, acabo por passar várias semanas por ano em Rubuguri e aproveito para iniciar alguns projectos e criar mais dinâmica nos já existentes.
Numa aldeia onde todos se conhecem, ser o “muzungo” que promove estas acções não me deixa passar despercebido onde quer que vá, especialmente com a criançada que me persegue mesmo nas minhas corridas matinais. Não lhes percebo uma palavra mas creio que estão sempre a pedir ou à espera que lhes conceda mais uma sessão de cinema lá na biblioteca da aldeia criada pela Footsteps. Aos domingos à tarde, decidi montar um projector e passar filmes animados para atrair mais crianças à biblioteca, pois percebi que elas não entravam julgando que era só para turistas ou que era pago. Na primeira sessão tive de convencer as professoras da primária a levar as crianças. Nas sessões seguintes tinha crianças penduradas nas janelas, às cavalitas, nas prateleiras dos livros, aos magotes a degladiarem-se lá fora para entrar…caótico! Como eles não sabem os dias da semana, nem sequer as horas do dia, não perceberam que as sessões aconteciam aos domingos à tarde. Assim limitavam-se a andar atrás de mim, não fosse eu entrar na biblioteca e passar um filme.
5. Na descrição da Footsteps Through Africa diz algo muito interessante: “What we avoid is presuming the needs of people living in these communities. Rather, we learn from them”. Como é que na prática isto se processa?
Pedro Quirino: Como mencionei anteriormente, as pessoas de Rubuguri vivem felizes com aquilo que têm pois não conhecem mais. A maior parte delas nunca foi à cidade mais próxima que fica a 65kms de distância, nunca viram uma mercearia, nunca viram um banco, nunca viram um polícia! Nós, ocidentais do mundo desenvolvido, é que presumimos que eles vivem miseravelmente por não terem aquilo que nós consideramos imprescindível, desde televisões a sapatos.Mas na realidade, talvez eles sejam mais felizes do que nós por terem de facto tudo o que precisam e não aquilo que nos dizem que queremos. Assim, torna-se muito difícil ajudar sem ultrapassar aquela linha ténue onde já estamos a oferecer algo mais do que são os padrões normais e a quebrar o equilíbrio daquela pessoa naquela comunidade.
Desta forma tentamos apoiar e desenvolver projectos que sejam o mais sustentáveis possível, seguindo a velha máxima de “Não lhe dês o peixe, ensina-o a pescar.” Uma das primeiras coisas que tento sensibilizar os viajantes é para não darem esmolas ou doces às crianças que o solicitam, muitas vezes, ao longo da estrada, aos viajantes que por ali passam. Primeiro porque isto torna-as vulneráveis e dependentes de caridade para o resto da vida e segundo devido ao grande problema de falta de cuidados básicos dentários. Ao invés, apoiamos todos aqueles que queiram aprender uma profissão ou uma mestria com que possam futuramente ganhar o seu sustento. Oferecemos também uma porca a cada família carenciada, na condição de não matarem a porca para consumo e apenas poderem utilizar os leitões para consumo ou vender. Comprámos terra e fizemos plantações de várias espécies de frutos e vegetais para diversificar o regime alimentar de todos aqueles que quiserem participar na plantação e manutenção da quinta: podem tirar o que quiserem apenas para consumo, desde que plantem de volta. Estabelecemos portanto talhões de terra onde só podem cultivar determinadas espécies para não acabar na comum monocultura local. Tentamos ensinar e implementar o conceito de sustentabilidade onde quer que intervimos mas, às vezes, não é fácil…em troca aprendemos uma grande lição de humildade e a relativizar aquilo que achamos que temos falta.
6. Sendo uma ONG presumo que dependam, quase de forma exclusiva, de donativos. Como é feita essa recolha anual de fundos?
Pedro Quirino: Sim, a organização depende de donativos mas, acima de tudo, de voluntariado que acaba também por contribuir financeiramente para a continuidade dos projectos. Cobramos um valor semanal por alojamento em pensão completa num lodge muito básico aqui em Rubuguri para assegurar condições mínimas de conforto e salubridade aos voluntários e, também, obter financiamento para a criação e manutenção dos vários projectos. Os donativos podem ser feitos directamente através do website mas gostamos sempre que nos contactem porque dessa forma podemos explicar quais os projectos que estão a ser desenvolvidos ou prestes a iniciar para que quem contribui possa conhecer melhor a nossa missão e saber onde serão aplicados os fundos. Porém, sem dúvida, que preferimos a vinda de voluntários aos donativos.
9. Qual foi o maior ensinamento que estas comunidades locais te deram?
Pedro Quirino: Uma enorme relativização daquilo que consideramos serem problemas na nossa vida. Depois desta experiência pomos tudo em perspectiva e recebemos uma enorme lição de humildade. Por vezes, não é fácil lidar com tantas coisas pesadas psicologicamente ao mesmo tempo e tão próximas. Às vezes só apetece baixar os braços e voltar as costas a tudo aquilo e questiono-me por vezes “Para que estou a fazer isto?”.
Passado um mês a viver nestas condições e nesta realidade, esqueço-me que também existem duches de água quente e pastéis de nata. Porém basta querer e volto a ter tudo isso outra vez. O poder de escolha e o acesso a tudo o que o mundo desenvolvido concebeu até hoje é um privilégio que assiste a uma pequena parte da população a nível mundial, que nem o valoriza. Para realmente perceber esta condição é preciso viver essas experiências de forma autêntica e não se consegue somente enquanto meros espectadores de um mundo diferente quando viajamos.
10. O que te fez mudar de malas e bagagens para o continente africano?
Pedro Quirino: Na altura senti que estava a precisar de mudar de vida e de abraçar novos desafios. Esta oportunidade surgiu no timing perfeito e nem hesitei. Sempre sonhei em, um dia, viver em África mas julgava que para isso acontecer teria de ganhar imenso dinheiro e um dia conseguir reformar-me e ir viver para uma quinta no meio da savana africana rodeado de animais. Acontece que, às vezes, a vida nos apresenta atalhos e é preciso ter a coragem de os aceitar. Assim o fiz!
11. Por fim, imaginas-te a sair de África?
Pedro Quirino: Sim, talvez não definitivamente pois gosto de ter sempre um pé cá e outro lá. Mas uma coisa é certa e, pode parecer cliché mas… é África que não sai de nós.